sábado, 24 de março de 2012

O DRAGÃO GLAUBER E O BARRAVENTO DA MONTAGEM

No seu recente livro “A Primavera de Dragão”(1), Nelson Motta nos conta sobre desafios e tormentos pelos quais o “vulcão” passou durante os momentos iniciais do processo de montagem de Barravento, até que se deu a entrada em cena da mão amiga de Nelson Pereira dos Santos. Revela o drama do seu protagonista, que entrava pelas madrugadas “ tentando montar Barravento segundo os seus conceitos narrativos dialéticos e não lineares, mas o filme se tornava cada vez mais incompreensível.” (pp.253/4). 

Palavras do próprio Glauber de alguma forma referendam tal relato: “ quando vi o material não gostei e deixei de lado. Oito meses mais tarde, Nelson Pereira dos Santos assistiu aos copiões e achou interessante”( 2 ) .
Personalidade forte, ciente do seu talento criador, Glauber sempre teve o legítimo direito de se considerar (e ser) um Autor de filmes. Como, então, sossegar um leão de tamanha (ou tantas...) cabeça(s) ?. Me indago com algumas cogitações – e não hipóteses - dentre outras tantas que poderíamos formular:
- Será que Nelson Pereira dos Santos, na época mais experiente, simplesmente encontrou “caminho das pedras” para formatar a finalização do filme que Glauber “visualizava”, mas que não o realizava, , com o material que ele mesmo filmou?
- Será que Nelson, compreendendo profundamente e concordando com a essência das idéias que Glauber desejava transmitir, bem como com a forma inovadora através da qual pretendia expressa-las, contribuiu através do afastamento emocional e crítico?
- Será que houve uma dinâmica entre as duas “possibilidades” anteriores? Ou, ainda, e especialmente,
- Será que o filme que veio a existir é a mesma “visualização” de Glauber antes de iniciar a montagem?
Bem, são cogitações. De concreto, o que importa agora é voltar a registrar o fato de que a contribuição do montador foi definitiva para que Barravento viesse a existir. Muitos contemporâneos sabem que Glauber sempre afirmou isso. 
Admitindo a premissa de que a montagem (ou a atual edição digital) não é um simples encadeamento de cenas/planos filmados (ou gravados, tanto faz), tal episódio sobre 
Barravento me estimulou a refletir um pouco mais sobre qual seria, então, a dimensão, a relevância, da montagem em determinado filme de um cineasta “autoral”, particularmente nas situações em que o mesmo não a executa diretamente, ou mesmo não está fisicamente presente durante todo o processo. 
Tal como outras contribuições para a construção da obra cinematográfica, naturalmente a montagem também deve ser conduzida por especialista nessa atividade específica. No âmbito cinema industrial, tal profissional chega a ficar mais vinculado ao produtor executivo do que ao diretor, sendo hoje muito comum a prática através da qual a produção contrata isoladamente o diretor e demais profissionais responsáveis por áreas fundamentais do filme (fotografia, cenografia, música. e montagem, por exemplo), fazendo a concatenação das colaborações com foco às vezes meramente comercial.
Em outro extremo ( nosso caso do filme de autor ), é consagrado que, independentemente da fonte do recursos financeiros, é condição basilar o espaço do diretor para a decisão final no sentido de escolher os seus principais colaboradores e realizar a obra com plena liberdade de criação..
Especificamente na etapa de montagem, quase sempre os diretores atuantes nessa linha de realização consideram que a sua presença, intervenção e mesmo domínio do processo durante a sua execução é fundamental. Seguramente porque, dentre o conjunto de elementos ou fases que devem se articular na composição da obra cinematográfica, consideram a montagem como um componente definitivo – uma vez que é o “fechamento” do filme.
Partindo da premissa de que um montador/editor qualificado vai sempre acrescentar sensibilidade e competência técnica no processo de conclusão/finalização da obra cinematográfica, tenho uma visão mais flexível quanto ao que outros tantos consideram como necessidade imperiosa o minucioso acompanhamento direto de tal processo por parte do diretor. Mesmo no caso do filme autoral. 
Esta também é a ótica do consagrado montador/editor Walter Murch, detentor de dois “Oscar” ( Apocalipse Now e O Paciente Inglês ), que no decorrer do seu livro Num Piscar de Olhos ( 3) , bem demonstra como a contribuição desse profissional deve se dar através de um posicionamento criador e não subserviente, que reflita a sua compreensão e integração com o conjunto da obra, respeitando, inclusive, as múltiplas contribuições até ali já incorporadas.
Muito especialmente ao diretor que pretende construir uma obra cinematográfica mais personalizada, de caráter autoral, lhe cabe o dever de disponibilizar para o montador/editor ao menos três componentes, que considero insumos fundamentais para a eficaz execução da etapa final de construção do filme:
1) transmitir ao montador com clareza a sua visão e intencionalidade para com o filme (um árduo esforço, sem dúvida) ;
2) oferecer/sugerir/negociar diretrizes para a realização dessa etapa do trabalho (o que significa ter capacidade de debater e acatar sugestões) 
1) entregar material filmado/gravado que apresente corretas condições técnicas e em quantidade suficiente que permita, quando conveniente, a formatação de alternativas que não violentem a proposição inicial.
. Ao cumprir tais requisitos básicos, o cineasta-autor estará assegurando que a sua obra expresse as mensagens, ou sentimentos, ou convicções, enfim, o que pretende comunicar. Nessa ótica – e desde que o trabalho a ser desenvolvido seja confiado à responsabilidade de profissional/parceiro competente - não é condição necessária a sua presença física na sala de montagem/edição. 
Como sabemos, é crescente a modalidade de produção denominada “de baixo orçamento”. Considero que nestes casos a compreensão aqui apresentada deve merecer atenção e ponderação. Além da limitação de recursos, são quase sempre verdadeiras batalhas, sujeitas ainda a compromissos rigorosos quanto ao cumprimento de prazos contratuais, a serem cumpridos pelo(s) produtor (s) junto a patrocinadores e/ou financiadores, empresariais ou governamentais.
Em outro momento, também com recursos limitados, mas seguramente um pouco mais liberados das tantas e tantas dificuldades dos tempos atuais, Nelson Pereira dos Santos montou Barravento, com o leão ali junto, rondando a cria. Mas, “tenho certeza” de que se, por uma circunstância qualquer, o primeiro tivesse tocado a montagem sozinho, o dragão teria ficado satisfeito. E continuaríamos tendo um Filme de Autor.

Por Raymundo Mendonça 



Referências Bibliográficas


1. MOTTA, Nelson –A Primavera do Dragão – A Juventude de Glauber Rocha. Objetiva, Rio de Janeiro,2011.

2. Extraído do registro de entrevista coletiva, publicada originalmente na revista Positif n. 61/janeiro de 1968/pg.19. Traduzida e publicada no Brasil em edição da Sociedade dos Amigos da Cinemateca (SP), livreto intitulado Glauber Fala à Europa, s/d.
3 MURCH, Walter – Num Piscar de Olhos, Jorge Zahar Editor 
Rio de Janeiro,2004.

* Assistente de Direção , de Montagem e Montador, junto a Roberto Pires ,Oscar
Santana, Olney São Paulo e Sebastião de França.
Roteirista, Diretor, Montador e/ ou Diretor de Edição de Vídeos para
Treinamento / Desenvolvimento de Recursos Humanos e Documentários Institucionais.














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